Por Egle Leonardi e Júlio Matos
Viralizou nas redes sociais um corte de uma entrevista concedida em abril pela médica alergista e imunologista, Ekaterini Goudouris, ao programa Sem Censura, da TV Brasil, em que ela afirma que bebida alcoólica não corta o efeito do antibiótico. Misturar álcol e antibiótico é um tema mais que polêmico, que pode levar à desinformação.
O próprio Conselho Federal de Farmácia (CFF) se manifestou hoje (10/07), por meio das suas redes sociai, em que a farmacêutica Carolina Xaubet Cebrim, da Coordenação Técnica e Científica (CTECT) da entidade, buscou responder à pergunta feita à médica no Sem Censura.
Segundo Carolina, não só o álcool pode alterar o processo de biotransformação e os efeitos farmacológicos de muitos medicamentos comuns, como, inversamente, muitos medicamentos podem alterar a absorção e a biotransformação do álcool.
“As potenciais interações dos antimicrobianos com o álcool são consideradas em três categorias, as quais têm implicações para o paciente”, comenta a representante do CFF. Conforme ela, podem ocorrer alterações na farmacocinética e na farmacodinâmica do antimicrobiano e/ou nos efeitos do álcool; alterações na eficácia do antimicrobiano; e desenvolvimento ou aumento da toxicidade dos medicamentos com consequentes efeitos adversos.
Com mestrado e doutorado em Química de Produtos Naturais, pós-doutorado em Fitoterapia pela Université Lille Nord de France, consultor farmacêutico em laboratórios de manipulação de medicamentos orais e injetáveis e professor do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, Antony Barbosa considera a fala da médica como absurda e que negligencia a interação medicamentosa induzindo a população a práticas associativas veementemente não recomendadas pela farmacologia e toxicologia.
“A interação medicamentosa entre álcool e antibióticos é um tema de extrema importância na área da farmacologia e toxicologia, com implicações relevantes para a saúde pública. A ingestão concomitante de álcool e antibióticos pode resultar em interações farmacológicas complexas. O álcool, ao ser metabolizado predominantemente pelo fígado, utiliza as mesmas vias enzimáticas que muitos antibióticos, como o sistema enzimático do citocromo P450. Esta competição pode alterar a farmacocinética dos antibióticos, diminuindo sua eficácia terapêutica, aumentando o risco de toxicidade e pode contribuir para os mecanismos de resistência bacteriana. Além disso, o álcool pode induzir ou inibir a atividade enzimática, afetando a biodisponibilidade dos medicamentos”, explica Barbosa.
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De acordo com o professor, antibióticos como a ceftriaxona e o metronidazol podem aumentar os níveis de acetaldeído, um subproduto do metabolismo do álcool, causando sintomas desagradáveis, como náuseas, vômitos e dor abdominal. Além disso, essa interação pode sobrecarregar o fígado, levando a danos hepáticos graves.
“Portanto, é fundamental evitar o consumo de álcool durante o uso de antibióticos para garantir a eficácia do tratamento e evitar complicações de saúde. O paciente deve sempre consultar um médico ou farmacêutico para orientações específicas sobre a interação entre álcool e medicamentos”, afirma ele.
Barbosa ressalta que o farmacêutico é o profissional mais especializado no estudo dos medicamentos e de suas interações, possuindo conhecimento mais profundo sobre farmacologia do que qualquer outro profissional de saúde, incluindo médicos.
Ao ICTQ, Barbosa listou alguns antibióticos que apresentam interações particularmente perigosas com o álcool:
- Metronidazol: pode causar uma reação tipo dissulfiram quando combinado com álcool. Esta reação é caracterizada por sintomas como náuseas, vômitos, rubor, taquicardia e hipotensão, resultantes da inibição da aldeído desidrogenase e acúmulo de acetaldeído.
- Cefotetan: uma cefalosporina que também pode induzir uma reação tipo dissulfiram, levando a efeitos adversos graves quando ingerida com álcool.
- Linezolida: Interage com tiramina presente em algumas bebidas alcoólicas, podendo precipitar crises hipertensivas devido à inibição da monoamina oxidase.
“Do ponto de vista toxicológico, a combinação de álcool e antibióticos pode exacerbar os efeitos adversos de ambos os agentes. Os sintomas gastrointestinais, como náuseas e vômitos, são frequentemente intensificados, aumentando o desconforto do paciente e potencialmente levando à desidratação e desequilíbrios eletrolíticos. Neurologicamente, a combinação pode resultar em maior sedação, vertigem e risco de acidentes devido à coordenação motora comprometida”, fala Barbosa.
Vale lembrar que a regulamentação do uso de medicamentos e substâncias alcoólicas é estritamente controlada por agências de saúde, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Essas entidades fornecem diretrizes claras sobre a administração de medicamentos e destacam a importância de evitar o consumo de álcool durante tratamentos com antibióticos. O não cumprimento dessas diretrizes pode resultar em consequências legais, especialmente se o uso concomitante levar a complicações de saúde que poderiam ser evitadas.
“A proliferação de fake news sobre a segurança do consumo de álcool durante o tratamento com antibióticos é uma preocupação crescente. Infelizmente, alguns programas de televisão têm disseminado informações equivocadas, prestando um desserviço à população. Essas informações errôneas podem levar pacientes a ignorarem orientações médicas, resultando em falhas terapêuticas e riscos adicionais à saúde. Informações como essas podem incentivar o uso concomitante de antibióticos e outros medicamentos, especialmente entre pacientes alcoolistas, o que pode ter consequências graves, inclusive óbito”, atesta Barbosa.
Assim, é essencial que a população seja educada sobre os riscos reais e que confiem apenas em fontes de informação de fato confiáveis, como profissionais de saúde e publicações científicas revisadas por pares. Programas de televisão, com grande alcance, têm a responsabilidade de informar corretamente e baseado em evidências científicas.
“A interação medicamentosa entre álcool e antibióticos é um risco significativo que deve ser abordado com seriedade. Compreender os mecanismos farmacológicos e toxicológicos dessas interações, juntamente com as implicações legais, é crucial para garantir a segurança do paciente. Além disso, combater a desinformação é fundamental para promover a adesão às orientações médicas e assegurar a eficácia dos tratamentos. A educação contínua e a disseminação de informações corretas são ferramentas essenciais na proteção da saúde pública”, reitera Barbosa.
Por outro lado
Já o PhD em Farmacologia e professor do ICTQ, Thiago de Melo, ressalta que não há exemplos práticos de álcool anular o efeito do antibiótico. O que pode acontecer é o paciente ingerir bebida alcoólica e acabar esquecendo de tomar a próxima dose, aumentar a chance de náusea e vômito e perder também aquele comprimido que era para ser absorvido, do mesmo modo que outras classes podem ter seus efeitos anulados com álcool.
“O que não dá é ficar colocando o argumento de indução enzimática. Essa fala era muito comum nos livros antigos e ficou cansada, porque muitos fármacos como antibióticos nem biotransformados são, como a cefalexina, a amoxicilina, a nitrofurantoína, isso não tem chance de anular efeito. Na verdade, a forma como a médica falou não está errada, é verdade que não anula. Nós vamos sugerir que o paciente não tome álcool, porque eu não quero aumento de efeitos adversos. E, em alguns casos, até chance de lesão hepática, como doxiciclina, rifampicina. Mas dizer que o antibiótico não funcionou porque bebeu álcool, isso não tem sentido”, assegura Melo.
Frente a essa polêmica, e com base nos especialistas, o que você, farmacêutico, acha sobre o tema do consumo de bebida alcoólica em conjunto com antibióticos?
Matéria desenvolvida para nosso cliente ICTQ.